domingo, 19 de agosto de 2012

VQ // nº 43 // Memória

Memórias de meus tempos de fábrica

Hoje a grande maioria das fábricas está fechada e a cidade sem perspectivas de crescimento econômico. O que as fábricas representaram para a população valenciana?

Por Carlos Bruno S. Barbosa*
Ilustrações Vitor Castro


Não que eu seja uma daquelas pessoas que só vê o lado negativo das coisas; nem fica bem pra um ser humano ser assim, né? Mas confesso que às vezes me dá uma sensação estranha, meio que uma tristeza, quando vejo todas essas fábricas têxteis fechadas aqui em Valença. Elas fazem parte de minha história, de minhas memórias. Sou de um tempo em que essas fábricas moviam a economia da cidade; você saía de uma delas e logo em seguida já arrumava emprego em outra.

Me lembro bem de meu início de trabalho nessas fábricas. Acho que foi nos idos de 1969 quando comecei a trabalhar em fábrica (me desculpe, mas faz muito tempo e a gente sabe como é a nossa memória: às vezes ela engana a gente e recria as nossas histórias). Fazia um ano que papai tinha morrido, éramos 11 pessoas na família numa casa grande na roça e precisávamos ajudar nas finanças da casa. Como eu já tinha completado 14 anos, mamãe conseguira uma vaga na Fábrica da Chueke pra mim (sim, é aquela mesma onde fica a Richards hoje em dia).

Eu morava no Cambota. Naquele tempo, o bairro não era asfaltado; ainda havia até os trilhos de trem na estrada. Como não havia mais trem por lá, colocaram até um ferro pra impedir a passagem deles nos trilhos – minha irmã Maria e eu já nos machucamos passando por ali naquela época. Tenho a cicatriz até hoje, bem aqui nessa perna, veja só. Pra chegar na Chueke, andava quatro quilômetros e meio e trabalhava na noveleira – aquela que fazia os rolos - das cinco da manhã até uma da tarde. Trabalhei apenas um mês lá, pois mamãe achava ruim eu caminhar tão mocinha pela estrada de madrugada.

De fábrica em fábrica
Mamãe optou por me colocar na Fábrica de Renda e Bordado, em frente ao que hoje é a Metamorfose, pois minha irmã mais velha, a Yara (na época com 20 anos de idade) trabalhava lá e assim poderíamos sempre ir juntas ao trabalho. Lá trabalhei na máquina automática de fiação durante um ano e pouco. Todas as meninas da família, minhas irmãs, trabalharam lá, com exceção da Dinah, minha irmã mais nova. Como eu dissera antes, a história dessas fábricas fazia parte da trajetória de trabalho de nossa família, de nossa luta pela sobrevivência sem papai aqui para nos amparar – tínhamos que manter nossa casa, dar boas condições para mamãe e para nós mesmas.
E deu tudo certo, graças a Deus! Após a Fábrica de Renda e Bordado, trabalhei na Fábrica Progresso e na Santa Rosa. Não faltava trabalho em fábrica naquela época.

Como os tempos mudam. Hoje, se você não quer ficar desempregado, tem que buscar vaga no comércio, que, naquela época, era quase inexistente. As pessoas saíam de Valença pra comprar as coisas, nenhuma loja grande durava na cidade por muito tempo. Agora, está tudo mudado: o comércio cresceu muito e todas as fábricas nas quais trabalhei fecharam. Fico impressionada com essas mudanças bruscas; se bem que eu adoro passar no centro e poder fazer minhas comprinhas sem ter que sair da cidade. Como disse, não se pode ver só o lado negativo das coisas.

Sindicato tem culpa?
Ah, mas tinha uma coisa que eu não gostava nem um pouquinho da época em que trabalhava em fábrica: como eu era menor de idade, meu salário era muito mais baixo que de um trabalhador maior de idade. E tinha que dar a mesma produção [atingir as metas] que os mais velhos, veja só! Era uma pressão danada, eu me virava, até dava produção, mas não passava da meta. As colegas que davam produção maior às vezes me ajudavam. Não posso esquecer jamais da minha amiga Zilma, que, na época da Santa Rosa, dava produção e ainda me ajudava pra que eu alcançasse a minha meta.

Atitudes como essa não acontecem muito hoje em dia, com todas essas câmeras internas, com todo esse desespero para se manter no emprego. Hoje é mais cada um por si. Mas acaba que, pensando nas fábricas de Valença hoje em dia, não há nem união, nem cada um por si, afinal, não há mais fábricas como antigamente por aqui. Às vezes, vem gente me dizer que foi por causa do sindicato que as fábricas fecharam, mas eu não sou boba: na década de 1990, a Santa Rosa, por exemplo, muito antes das brigas com o sindicato, já funcionava meia boca, pagava os funcionários com atraso; esse negócio de ficar culpando os outros pelos nossos próprios erros é uma atitude que eu não aceito, sempre fui muito honrada e não gosto de mentira e covardia. Que cada um admita o seu defeito, conviva com seus pecados e arrume um jeito de encontrar a sua redenção.

É... parece que pecamos demais como cidadãos valencianos e nada de acharmos uma redenção. Continuamos votando errado, trocando voto por saco de cimento, dentadura, um dinheirinho e quem paga a conta somos nós mesmos: aí estão as fábricas fechadas, Valença estagnada, um cenário triste que não me deixa mentir. A cidade tinha tudo pra dar certo, não tinha? Mas não dá. Ver as fábricas fechadas me faz pensar em tudo isso, me faz relembrar – se a gente não tiver memória, como vamos conquistar um futuro melhor para nossa terrinha? Mas, já disse isso e nunca custa lembrar, não devemos trazer na cabeça só coisas negativas, a gente fica até doente assim, não é verdade? Tenho fé em Deus que um dia Ele vai iluminar a cabeça da minha gente e o povo vai se conscientizar. Sim, um dia, a gente vai usar a memória pra funcionar, aprender com nossos erros e ver nossa cidade voltar a crescer!

* Carlos Brunno é poeta e professor, e escreveu este texto baseado nas memórias de sua mãe, Vanda Silva Barbosa, de 56 anos

4 comentários:

helenecamille disse...

ótima matéria Carlos. Levei um tempo para descobrir que o narrador era narradora (rsrsr). Adorei a frase "Tenho a cicatriz até hoje, bem aqui nessa perna, veja só."
Cara, mulheres como sua mãe, a mãe de sua mãe, como a minha e a de muita gente por aí é que me fazem sentir o maior orgulho de ser mulher. 11 pessoas na família e todos sobreviveram com dignidade é ou não é impressionante. Isso é o lado positivo em essência e em ação.

Pensando em memória: perto de onde moro também vejo os fósseis de olarias e portos, além da atividade pesqueira quase inexistente (acho que só tem uma cooperativa hoje). Fala-se muito em sustentabilidade, mas o potencial desse pedaço de terra por cá não é revitalizado, ressuscitado. Temos portos para dar vender e emprestar, é Porto da Madama, Porto Velho, Porto Novo, Porto do Rosa, etc. Todos sobrevivem apenas em nomes de bairros. Uma lástima, pois a população poderia se beneficiar e muito caso existisse algum planejamento nesse aspecto.

Anônimo disse...

Muito bom o texto!

Anônimo disse...

Sabemos hoje que as fábricas fecharam por vários motivos. Parque industrial obsoleto, logística inadequada, direção incapaz, concorrência nacional e internacional. Nem as benesses do poder público foram aproveitadas a contento, e olha que foram muitas. No entanto seria normal, se fosse parte do transitório, ou seja, se a atividade econômica fosse de imediato substituída por outra. O triste é que isso não aconteceu e destruiu uma cultura da qual as mulheres citadas no texto compartilhavam, a cultura do trabalho. Trabalhar, produzir e ganhar a vida com orgulho e dignidade. Para piorar a situação, ao longo dos anos a zona rural foi sendo esvaziada. A atividade agropecuária em Valença está totalmente falida e os trabalhadores rurais sem ter o que fazer na cidade. Mas não sou pessimista. Acho que tem jeito. Quando vejo outras cidades, tenho certeza. Só acho que não vai ser o prefeito que vai resolver. Nenhum deles, seja qual for o eleito. Temos que recobrar o orgulho, o brio, a vontade de vencer. Uma pequena confecção tocada com garra, amizade e compromisso vai longe. O pequeno sítio idem. Mas não tem estrada rural em boas condições, dizem alguns. Pedi o prefeito para arrumar a estrada e nada. Façamos um mutirão. Enxada, escória, um caminhão. Vamos fotografar e divulgar e dizer assim para o prefeito (qualquer um) - Não precisamos de você. No dia em que esta cidade não depender tanto do poder público ela cresce, com certeza.

Anônimo disse...

Algumas coisa podemos e devemos fazer, entre elas, exigir dos governantes que atendam nossas demandas. Se necessário, organizar os interessados para cobrar seus direitos. Quando falamos de políticas públicas, temos que cobrar,com veemência, do poder público!